"Aos queridos amigos um ano novo cheio de realizações e esperança, porque no fim das contas é ela que procuramos, aquela coisa emplumada que pousa leve na alma. Desculpem a falta de tempo, a falta de jeito e recebam meu carinho, meus abraços e meus beijos. Amor e paz! O resto a gente faz! O sorriso do gato no ano bom.
Para ser franco, não tive tempo de tomar nenhuma resolução, nesta virada de ano, neste final de milênio tão cantado em verso e prosa. E sei que essas resoluções de fim de ano fazem parte do calendário, fazem parte do ritual, ainda que fiquem abandonadas, num canto, logo depois de pronunciadas. Mas o fato é que o ano já prepara seu último suspiro e nenhuma resolução foi tomada. Nenhuma mesmo. Talvez não tenha tido, igualmente, o desejo a me guiar, aquela vontade de mudar algum rumo, alguma história. Até para isso ando cansado. Estamos todos cansados, pensando bem. Não sinto a urgência de mudança nos ares e brisas deste verão chuvoso. Finalmente, eis que é chegado o novo milênio, com direito a um céu de artifícios, e tudo o que quero é olhar para trás e deixar o meu olhar se perder nas imagens que fui amealhando pelo caminho. É só o que quero, acreditem. Um avestruz saudosista, é assim que me sinto, enquanto o milênio me atropela, sem que ninguém tenha anotado a placa.
(Fecho os olhos e vou pincelando um céu de ano novo, os pontos de luz se abrindo no céu, como flores brilhantes. Holy chorava no Posto 6, já perto do forte, depois da Rainha Elizabeth. Eu passei o braço por cima de seus ombros que subiam e desciam, saltando no ar,com os soluços e os espasmos do pranto. Acima de nós, o céu era um jardim todo colorido. Sem saber o que fazer, sem nenhum linimento que abrandasse a dor daquele coração, eu ia repetindo baixinho: já passou, já passou, como quem diz uma reza. Lembro dos olhos de Holy, um verde azulado boiando no mar de suas lágrimas. A nossa frente o ano bom de tempos atrás. E, anos depois, num outro céu de réveillon, era eu quem chorava e era de Holy o braço que me amparava. Uma mão lava a outra e um ombro se empresta com generosidade, nessas datas tão cheias de emoção.)
O que é que gostaríamos realmente de fazer nesta virada? Onde dormem esses nossos desejos mais secretos? Às vezes, eles se escondem tão bem que a gente sabe de sua existência, mas não consegue encontrá-los. Aquela vontade de mudar o rumo, arrumar toda a vida numa só bagagem e partir. Eu tenho a impressão de que a grande maioria das pessoas tem essa fantasia secreta (ou nem tão secreta assim): a de mudar o rumo de suas vidas, recomeçar. Outra vez. Duas palavras mágicas. ( Além dos fogos de artifício, há outras manchas de luz na noite estrelada. Os lampiões de querosene e os puçás com as iscas sangrentas amarradas com barbante, na pesca do siri. Os pés afundando na areia, um mundo de mistérios e terror na água escura. Quando a maré recolhia seu manto, os lampiões eram acesos e o barco colocado na água. Às crianças era permitido brincar na areia, contando e recontando o número de siris apanhados. À luz alaranjada das lamparinas, os vultos iam mar adentro, empurrando a água com os quadris. Os remos batendo na superfície d’água iam fazendo um ruído gostoso e toda palavra era dita em sussurro.)
A minha fantasia de sempre: um quiosque na Finlândia. Não sei porquê, mas sempre invento que vou abandonar tudo e recomeçar na Finlândia, vendendo sorvetes num quiosque. Essas resoluções não tomadas, mas que são a esperança de tornar a escrever a própria história. Mudar um pequeno detalhe, que seja. Poder voltar atrás e não dizer aquela palavra que magoou um coração, não fazer aquele gesto, não virar as costas, quando era hora de abraço. Se pudéssemos ter a certeza do quiosque na Finlândia…
(Entre as noites de lampiões, havia a grande noite da virada e a areia da praia cobria-se de flor e oferenda. O batuque e a vibração das palmas, as manchas brancas evoluindo na areia. Caboclos e pretos velhos, entidades d’além-mar soprando um vento morno na memória. Essa fé de várias raças se encontrando nas crianças do continente é que é bonito de se ver. Esse anjo de procissão que ondula os quadris ao som da batucada, enquanto empurra para o mar seu barco de espelhos e perfumes. Sua oferenda para a rainha das águas. Deusa. Como é que conseguimos ser tão mágicos e tão idiotas ao mesmo tempo?)
Vamos todos fazendo nossas listas de desejos secretos, aqueles que não temos coragem de confessar às paredes.Talvez seja o peso do milênio, talvez a responsabilidade de uma marca tão significativa, ou ainda a constatação da finitude, não sei. Mas a verdade é que cada dia que passa me aproxima mais do tal quiosque finlandês. E assim tem acontecido com as pessoas a minha volta. Os desejos aprisionados ganham força, os sonhos acordam do seu estupor e vão abrindo as janelas para alçar vôo, ou arejar o ambiente. Sempre na virada do ano. Sempre envoltos pelo hálito quente do verão.
(Pela manhã, a primeira do ano bom recém-chegado, havia o encontro com os gatos no quintal, todos com cara de sono, espreguiçando seus corpos magros sobre o telhado do barracão de meu avô. Um dia, um deles sorriu para mim. Foi uma coisa muito estranha, o sorriso daquele gato. Ele não bocejou, não fez nenhum som, nenhum miado. Apenas sorriu, como quem dá bom dia, muito naturalmente. Nunca me esqueci daquela manhã. Nunca mais apaguei dos olhos aquela luz que despencava do céu como uma cachoeira. Um gato sorriu para mim, numa manhã de ano bom, há tempos, e eu, confesso, talvez aturdido com a atitude do felino, não sorri de volta.)"
Fonte: Miguel Falabella
0 comentários:
Postar um comentário